O sentido do retalho e da fragmentação

 Muitas vezes, para falarmos de algo complexo, apenas a linguagem tradicional não dá conta. A linguagem vai acompanhando seu tempo e se moldando a ele. Um exemplo disso é o livro de Valêncio Xavier, Rremembranças da menina de rua morta nua e outras histórias. O livro exibe as violências cotidianas, os absurdos que ocorrem em nossa sociedade e os textos que estão no livro não seguem uma linguagem linear.

Sete textos compõe o romance gráfico, em todos se têm intertextualidades, com imagens, filmes, reportagens, o autor utiliza da linguagem cinematográfica para desenvolver sua literatura. Sabendo que Valêncio Xavier atuou em diversos campos profissionais, em diferentes funções: escritor, jornalista, historiador de cinema, cineasta, fotógrafo, cenógrafo, artista gráfico, assistente de direção artística, produtor, roteirista e diretor de curtas-metragens de vídeos e de televisão.  O que proporciona em sua produção uma mistura de gêneros, como aglutinações de fotos, imagens e textos, trazendo originalidade e estranhamento para a sua obra.


Ao se iniciar o romance gráfico, o primeiro texto, intitulado Memórias de um homem invisível, traz uma imagem de um filme homônimo ao conto, a leitura do filme vai reverberar na obra, pois as duas obras vão trazer o terror e a comédia; as pessoas estão no cinema, dois homens vendo o filme, um deles não consegue tirar o olhar da tela mesmo sendo masturbado pelo outro, temos o nonsense, o texto repleto de referências, a diagramação das páginas, as palavras centralizadas, imagens, linguagem do cotidiano, o final é surreal. Os recursos estilísticos contribuem para o sentido e como esta história nos é narrada.

No entremeio, há dois textos que continuam a nos levar para o encontro da menina morta e nua, O Barqueiro da morte, que nos remete ao mito grego de Caronte e Mulheres em amores que nos apresenta a histórias de duas mulheres que se amavam e na idade média foram condenadas e mortas pela igreja.

    

Chegamos então ao texto que dá título à obra Rremenbranças da menina de rua morta e nua. Estamos na década de 1990, jornalismo sensacionalista do jornal Aqui e agora, uma crítica clara a este tipo de reportagem. O texto é constituído por recortes de jornal sobre uma menina de rua de 8 anos, que é encontrada morta e nua em um dos caixões do Mundo do terror, um parque de diversão que estava na cidade de São Bernardo, no ABC paulista. Há poemas de Camões, há transcrição do jornal televisivo, uma obra pesada, fragmentada e beira ao absurdo. 

Há mais dois textos Sete (7) é o nome das coisas, constituído de conceitos sobre o número e fotos que apresentam o desaparecimento de uma mulher encontrada morta e abusada; em seguida o texto Macao, feito de cartas e fotos apresentando a violência e a morte.

     

O último Coisas da noite escura a introdução é uma foto em preto e branco de cruzes, seguido por um relato de Valério. Estava em uma pequena cidade, em um hotel ruim. Decide sair, estava tudo fechado e entra na igreja, onde conversa com o Asmodeu, o padre cinzento de olhos vermelhos e com unhas afiadas. Ao se despedir o padre diz que ele não irá embora. O texto termina com Valêncio morto. A conclusão é outra foto em preto em branco de várias cruzes.

Vemos que seus textos desafiam as convenções da narrativa ao misturar as linguagens trazendo maior impactos para a sua obra, a qual não é construída apenas pelo verbal, além das imagens criadas pelos recursos estilísticos, traz a fotografia, a reportagem, cenas dos filmes para corroborar e aprofundar as sensações do texto.

Sentimos a fragmentação e o retalho construindo o sentido, devemos estar atentos em como essas linguagens conversam, ir além nas entrelinhas e ir também por detrás das imagens e caminhando por estas frestas encontramos o sensível que nos afeta. A experimentação nessa obra, nos chacoalha, passeia entre a ficção, a realidade e as artes para uma profunda reflexão da sociedade e a naturalização das violências que aceitamos. Nossa realidade se mostra e se confirma sem sentindo algum. 

Todos os textos do livro são ligados pela temática da violência cotidiana, o autor passeia pelos diversos gêneros literários com abertura para as linguagens conversarem. A poeticidade dos textos, as imagens que cria gera um desconforto pela densidade da violência ao mesmo tempo em que a ligação com o fantástico e o nonsense criam a tensão existente na obra.


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