Cores, espaço e conexão - O Santo Sangue

Roteiro de Laudo Ferreira . Desenhos de Marcel Bartholo . 2018 . 80 páginas

“No mundo tudo se cura”

Falta ar. Por todo lado. Não vejo muitas saídas. Não encontro espaços para respirar. Essa é a minha sensação ao abrir e folhear “O Santo Sangue”. As cores densas, com linhas espessas que reproduzem o efeito do giz pastel nos tira o fôlego em diversos sentidos, mas é sobre o espaço que me refiro nessa onda quente da primeira impressão. Aos poucos me ambiento. Acostumo com as cores fortes, intensas, e com as sarjetas finas, quase inexistentes. Passado o deslumbre visual, posso começar a caminhar mais detidamente sobre as páginas.

Primeiro o marrom, a morte melancólica de uma santa.  Rosa. Volta ao passado e na luxúria decadente que tenta vislumbrar uma faísca de virilidade, encontro quem trilhará essa jornada. Um sopro lilás de presença santa antecede o vermelho ganancioso de quem quer o mundo para si. Verde. A própria sabedoria guiará o personagem em seu destino. Verde intenso. A possibilidade é apontada a partir do mantra: “no mundo tudo se cura”. A partir daqui, todas as cores em retroativo, até voltarmos ao presente marrom e tropeçarmos no quase epílogo que resgata o verde, resgatando também o mantra. Nem tudo está perdido.


Se trata de uma HQ sobre cores? Não. Mas esses são dois destaques na forma de contar essa jornada do matador de aluguel, Vérnio. Uma quadrinhização que preenche todo o espaço com suas cores, obrigando a imergir para ler; e cores que podem guiar a leitura por aparecer em blocos e funcionar como ambientação para os acontecimentos. Em outras palavras, Laudo e Bartholo optaram por criar uma ambientação visual com uma força incomum. Opção instigante!

Ainda sobre as imagens de Bartholo, algumas referências me vêm à cabeça durante a leitura. Algumas expressões de personagens lembraram muito imagens de Pablo Picasso, enquanto as paisagens chegaram a me remeter às pinturas de Paul Cézanne. Todo o visual da HQ se mostra forte e expressivo. 


Todo esse visual está a serviço de uma narrativa tão simbólica quanto as imagens. A Santa Lucen é basicamente uma representação de Jesus (todo santo é?), isso é importantíssimo na narrativa e leva a uma estrutura que me chamou a atenção: falha e pecadora, a santa deixa de lado os julgamentos para acalmar e curar. A oposição é seu pai, Contreiro, que se vê merecedor do mundo, enxerga em preto e branco, ignora a diversidade. Ou é seu ou não importa. Essa dualidade se torna mais complexa no personagem principal, Vérnio.

Ele é a síntese. O personagem, a mando de Contreiro, irá vingar a santa, que sangra e cura por ter sido “amaldiçoada” por Cueva – uma entidade. Com a ajuda de uma curandeira canibal (uma caricatura muito inteligente, que permite ser lida de diferentes maneiras), Vérnio consegue confrontar Cueva, após tomar um chá que o leva a um estado alterado de consciência, e acaba por confrontar a si mesmo.

Essa é a linha base da história. No decorrer da narrativa fica perceptível que Vérnio contrapõe o mantra da HQ (o universal “no mundo tudo se cura”), com o seu individual “o que tem que ser feito, será”. Um personagem que mesmo duro, trilha um caminho em que passa do maquínico-pragmático para o humano, reconhecendo os contextos em que se insere e abandonando a posição de capataz cego. 

Esse caminho mostra um entendimento de que acima de suas construções pessoais, há construções mais amplas, há um todo que independe do seu egoísmo. Talvez mais à frente também esteja a ideia de que esse mesmo universal não julga, apesar de poder nos impelir a agir bem e, em contrapartida, que os dois mantras podem se complementar: tudo no mundo se cura e o que tem de ser feito será.

E como “bem” é relativo e os contextos todos são múltiplos, podemos muito bem torcer para que uma velha bruxa e canibal continue a devorar alguns corpos entre seus chás e cafés.

“O que tem que ser feito será”


Laudo Ferreira é um grande autor dos quadrinhos nacionais, passeando por vários formatos e temas – horror, erótico, biografia, autoficção, cotidiano social - carrega um lado de expressão espiritual que é muito instigante. Tem diversas publicações emblemáticas o seu currículo, entre elas: a série “Tianinha”, “Clube da Esquina”, “Cadernos de Viagem” e “Yeshuah”. 

Marcel Bartholo se consolida como um dos nomes do quadrinho de horror nacional e já lançou livros que definem seu campo em um horror que parece não abandonar o pé na realidade social do nosso país. “Carniça”, “Canil” e “Lama” são algumas de suas obras.

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