Vazios fragmentados e o Vento como respiro da morte
Ao abrir o livro, nos deparamos com versos, o que nos dá a ideia de um poema, mas durante a leitura o que percebemos é um romance em verso, a diagramação faz com que olhemos a mancha da página, a qual está relacionada com o sentido da narrativa, os vazios existentes.
Um
pássaro pesado de se carregar, o pássaro ao mesmo tempo que nos remete a
liberdade também nos remete a gaiola e é da gaiola que iremos abordar, pois a
personagem tem voos baixos e é presa na gaiola social logo cedo. As imagens
criadas são poéticas, temos o olhar infanto/juvenil que percorre a narrativa,
misturando isso as obrigações da vida adulta sempre impedindo a personagem de conseguir
gritar.
Sabemos
dos acontecimentos da vida da narradora aos 8 anos, quando tem os primeiros
contatos com a morte, primeiro de sua melhor amiga Carla e depois de seu Luís,
o benze Dor.
“na
escola
em
casa
na
cozinha
perguntei
pra minha mãe:
-
o que é morrer?
Ela
estava fritando bife pro almoço.
-
o bife
É
morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que
Farão com a sua carne.
quando
estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos.
mas
tentamos.” (p. 20-21)
Aos
17, quando começa a ter seus voos baixos, experimentar a liberdade. Mas nesse
momento a gaiola social se fecha. Há respiros, em meio ao caos que estava a
começar:
“-
quer comer pizza?
não
quis.
a
semana não tinha sido fácil com Pedro me
odiando, eu estava
sem
fome e nem ânimo e meus pais
estavam
timidamente
alegres no amor deles de anos, era
bonito
ser sexta-feira e estar casado, espero que
um dia faça sexta
no
meu amor.” (p.56)
Quando
seus pais saem, Pedro em sua raiva machista e egoísta aparece:
“e
eu
melada
O chão
de
ardósia O Pedro
subiu
as calças
virou
as costas
e
saiu.” (p.60)
Aos
18, o momento do nascimento e da morte, a sociedade patriarcal e machista poda
as asas das mulheres para que continuemos a ter apenas pequenos voos. No caso
da nossa narradora, suas asas foram decepadas. Sabemos do nascimento de Lucas.
“em
casa,
com
o menino no
berço
e
os anos passando,
procurei
em cada canto
(nenhum
sinal da Flor)” (p.65-66)
Ela
é silenciada. Ela não consegue falar sobre o abuso. Ela nunca foi ensinada a
falar. Não encontrou a Flor. A Flor simboliza a beleza, o amor e a perfeição. O
que a personagem não encontrará em sua vida.
Aos
28 anos, todos os seus sonhos abandonados pela fatalidade do ocorrido 11 anos
antes. Trabalha em um escritório de advocacia. Sua vizinha, a Bete é a mãe de
seu filho.
“a
bete era Boa com crianças,
ama
cozinheira
de
mão cheia, e o que nasceu apenas como promessa
de dar almoço pro menino acabou
virando o dia
todo com ele que
Cresceu
menos
no meu
braço
e mais no dela.
as
despesas da casa, contas de telefone, de
água
e de
luz
me davam oi antes do meu filho me dar.” (p.73)
Aos
37 anos, Lucas foi fazer faculdade na cidade de Ouro Preto. Fazia tempo que não
se viam e ele a chama para visitá-lo. Ela fica receosa em ir. Pensa em contar como
ele foi concebido.
“eu
não conseguia contar isso pro lucas,
não
saia o som quando eu abria a boca pensando que
agora seria uma boa hora pra
contar.” (p.101)
Resolve
ir sem avisá-lo e com medo de não reconhecer o filho, que não via há quase um
ano. Ao parar em um posto de gasolina na beira da estrada encontra um amigo:
“-
seu nome vai ser Vento
eu
disse,
e
abri o carro
a
porta
de
trás.
o
Ventou entrou,
ocupando
o banco inteiro.
paguei
a gasolina sorrindo.
-
vai levar o bicho Mesmo, dona? – o frentista
Perguntou.
fiz
que sim com a cabeça.” (p.107)
Pegando
o retorno para São Paulo. Continua sem estabelecer contato com seu filho.
Aos
48, janta com seu filho, Lucas, e sua nora, Joana, que estão grávidos. A
narradora tenta falar sobre o que ocorreu com ela aos 17 anos, mas não
consegue. Seu filho diz que irão ter o neto na Itália, onde os pais de sua
esposa moram.
“o
moleque não era nem nascido e já tinha gente
pensando
na
sua
profissão.
o trabalho é
por
tantas vezes
a
maior tristeza da vida de uma pessoa e é só nisso
que
certos pais pensam, no filho
crescendo
e sendo alguém sendo que esse ser
alguém envolve tudo menos Ser.”
(p.120)
Ela
tentou falar com o filho, tentou mostrar que ela também errou, tentou mostrar
que se importava. A narradora nos diz que enquanto Bete foi um elo entre eles,
Joana era o abismo.
Os
nós entre eles desatam quando o neto nasce e a narradora diz que escolheram um
nome diplomático para uma criança, era o nome do pai de Joana. No primeiro
momento, pensamos ser um exagero de Lucas, mas talvez este também procurasse
uma família, que ele não teve.
“o
problema mesmo foi a falta
também
de amor.” (p.130)
Aos
49 anos, decide mudar do pequeno apartamento para uma casa que se encontrava
vazia desde sua infância, passava sempre em frente a ela, e nela jogou a carta
que falava de suas dores. Ninguém nunca a leu.
Escolheu
uma casa grande, pois vento precisa de espaço. No dia da mudança, o motorista
deu:
“-
até breve.
tão
sincero.
engraçado
ainda existir a possibilidade de alguém
querendo me levar ao cinema.
agradeci
o motorista por isso
mas
ele pensou que foi pelo trabalho.” (p.140)
Nesta
casa, com o Vento, retorna um mínimo de respiro, de música, de natureza,
felicidade.
Aos
50, vivenciou a casa, o Vento.
“a
casa
tinha
poucos móveis.
preferi
assim,
os
espaços respeitados, os corredores largos feito país.
fui
na loja de jardim e comprei mudas
de
rosas que plantei no quintal de mato alto
o
cheiro lembrava tanto
a
casa do seu luís.
(...)
os
finais de semana eu passava cuidando das plantas, do Vento,
varrendo
o quintal,
a
casa e
demorava,
pelo tamanho dos cômodos.
não
me importava,
dançava
com a vassoura e uma vez o cabo
me
lembrou um encaixe que
eu
gostei.” (p.145)
Lembrou
que estava viva, lembrou da música e enchia a casa dela, lembrava de seus
sonhos em ser aeromoça, lembrava do medo de borboleta para manter Carla viva.
Lembrava da época em que era feliz. Este momento trazia um pouco desta
felicidade.
Aos
52 anos. Aos sábados tinha o costume de ir à feira na rua de trás de sua casa.
Comia pastel e conversou com uma amiga que disse que a feira a mantinha viva e
ela pensou que queria ser assim.
Ao
retornar para sua casa, viu o portão aberto e uma confusão. Este é o único
momento em que ela grita:
“o
rabo dele
balançou
tão forte quanto sempre mas o corpo
Imenso
estava
grudado
no
asfalto
feito
borracha de
pneu.
soltei
o meu
pior
grito
que
não saiu
pela
boca
saiu
pelo cu
e
o rabo do Vento
parou.”
(p.154)
Perdera
o Vento, perdera seus últimos momentos de alegria. Deixou de ir trabalhar, de
se alimentar e ir ao banheiro. Fazia suas fezes ao lado do sofá, a única
maneira que sabia gritar. Uma mulher que foi massacrada pelos sentimentos não
dito, ninguém nunca soube o que realmente aconteceu. Nem seus pais, nem seu
filho. Suas amigas seguiram seus sonhos e ela seguiu calada em sua dor até o
momento de sua morte.
Os
cheiros são simbólicos neste romance, desde o início o xixi, o vômito e as
fezes aparecem em momentos de dor e humilhação. Gritou sempre por onde ninguém
escutava, mas sentiam. Pelo odor da putrefação que souberam de sua morte,
sozinha e silenciosa.
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